sexta-feira, 22 de outubro de 2010

CASO URBINO DE FREITAS - Importância da toxicologia

Um dos mais célebres casos de envenenamento, que abalou toda a opinião pública portuguesa no final do século XIX, veio demonstrar as fragilidades do sistema médico-legal da época e atestar a importância das análises toxicológicas. Este caso envolveu directamente antigos alunos do professor da Universidade de Coimbra Costa Simões, um dos pioneiros entre nós da química forense.
Vicente Urbino de Freitas (1849-1913) foi um médico portuense, formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1875 e professor na Escola Médico-cirúrgica do Porto . Em 1877 casou com Maria das Dores, filha de um rico comerciante de linhos. A este casamento sucederam-se um conjunto de mortes de familiares directos de Maria das Dores em circunstâncias suspeitas, nomeadamente as dos seus irmãos Guilherme e José, este último após ter sido consultado por Urbino de Freitas e com os sintomas típicos de ingestão de veneno. Alguns meses depois, os três sobrinhos de Maria das Dores, filhos dos seus irmãos falecidos que passaram a viver com os avós, receberam uma encomenda suspeita de bolos e amêndoas que revelavam um sabor esquisito provocando-lhes mal-estar. Estas foram atendidas pelo tio Urbino que lhes receitou eméticos e clisteres com a recomendação que fizessem uma retenção tão longa quanto possível . Apenas Mário, o rapaz e o mais velho, seguiu a prescrição do tio, mas viria a falecer com sintomas semelhantes aos do seu tio José. As suspeitas de envenenamento recaíram em Urbino de Freitas, acusado de querer ficar o único herdeiro da fortuna do sogro.
As circunstâncias do crime e a frieza e crueldade dos atos de Urbino causaram bastante celeuma e indignação. O caso foi muito mediático, tendo sido acompanhado diariamente pela população e tendo originado inúmeras discussões. No cerne da questão estavam as análises toxicológicas dos cadáveres e dos alimentos suspeitos.
Foi reunido um conjunto de peritos que integrou o químico portuense (1853-1923), Antônio Joaquim Ferreira da Silva, lente na Escola Politécnica do Porto. Este professor dirigia o Laboratório da Academia Politécnica e também o Laboratório Chimico Municipal do Porto . Apesar de se ter formado na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra em 1876 e de ter sido convidado a aí permanecer como professor, recusou o convite, preferindo concorrer à Academia Politécnica do Porto, onde ingressou em 1877. Publicou numerosos artigos de Química Analítica e dedicou-se à área da toxicologia, para a qual contribuiu com a descoberta de reacções características da cocaína e da eserina e o aperfeiçoamento de um reagente utilizado na detecção da morfina e da codeína que ficou conhecido como reagente de Lafon e Ferreira da Silva. Foi neste âmbito que interveio como perito em muitos casos de Medicina Legal, nomeadamente no processo de Urbino de Freitas. Foi sócio honorário do Instituto de Coimbra, tendo publicado vários artigos na revista O Instituto, um dos quais relativo à toxicologia. Neste descreveu um outro caso em que participou, conhecido como Caso Gonçalves. Tratou-se da morte de uma criança, em 1878, devido a engano do farmacêutico, pois em vez de um remédio à base de santonina para o tratamento de parasitas intestinais, terá aviado estricnina. Nesta memória, e para além da descrição do caso, Ferreira da Silva descreveu a evolução da toxicologia em Portugal no que concerne à determinação da presença de alcalóides vegetais, citando as investigações de Francisco Alves e Serra de Mirabeau e realçando o trabalho seminal de Costa Simões.
Relativamente ao caso de Urbino de Freitas, a comissão médico-legal, constituída por quatro peritos , realizou as autópsias de José e do seu sobrinho Mário, tendo as vísceras sido submetidas a testes toxicológicos no Laboratório Municipal do Porto. Segundo o relatório redigido pela comissão e apresentado a 7 de Outubro de 1890, não foram detectados alcalóides nas vísceras de José, situação atribuída ao adiantado estado de putrefacção mas, nas vísceras do pequeno Mário, foi detectada a presença de morfina, de narceína.

O relatório afirmava que as reacções químicas a que as submeteram, dão-lhes indício da existência, nas mesmas vísceras, duma base orgânica que, pelos caracteres químicos, se aproxima da delfina . Os testes foram repetidos nas vísceras retiradas numa segunda autópsia de Mário, com resultados idênticos. Contudo, os testes efectuados às amêndoas não revelaram a existência de qualquer substância tóxica.
A polêmica recrudesceu quando a defesa de Urbino de Freitas recrutou um médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Augusto António Rocha (1849-1901), fundador e redactor da revista Coimbra Médica que tinha sido colega de Urbino. Augusto Rocha aceitou cooperar com duas condições: serem consultados toxicologistas estrangeiros e contar com a colaboração de Joaquim dos Santos e Silva (1841-1906), então à frente dos trabalhos práticos do Laboratório Chimico da Universidade de Coimbra. Santos e Silva, um farmacêutico muito conceituado, foi aluno de Bernhard Tollens (1841-1918), no curto período em que este notável químico alemão ensinou em Coimbra, e estudou química prática com Friedrich Wöhler (1800-1882) e Friedrich August Kekulé (1829-1896) nas universidades de Goettingen e Bonn, respectivamente. Como sócio do Instituto de Coimbra, colaborou na respectiva revista com muitos artigos sobre a química analítica, nomeadamente no âmbito da hidrologia e da toxicologia. Entre 1878 e 1899 teve a seu cargo as análises químico-legais requeridas pelo Tribunal da Comarca de Coimbra.
Numa série de artigos publicados na Coimbra Médica estes dois professores da Universidade de Coimbra criticaram o relatório médico-legal e os seus proponentes, desencadeando uma guerra que viria a ser ganha pelos portuenses, pelo menos sob o ponto de vista legal, em virtude do acórdão de 1 de Dezembro de 1893 do Tribunal Criminal do Porto, que condenou Urbino Freitas a oito anos de prisão e ao degredo pelo homicídio do seu sobrinho Mário. O réu, demitido das suas funções e proibido de exercer medicina, acabou por ser deportado para o Brasil após ter cumprido a pena de prisão na Penitenciária de Lisboa.
No Brasil, por duas vezes Urbino de Freitas requereu permissão para exercer medicina, primeiro em Campinas, depois no Rio de Janeiro, tendo sido rejeitados ambos os pedidos. No ano de 1906, ocorreu nesta cidade um incidente de fiscalização do exercício de medicina que teve enorme repercussão pública. Por desobediência, o Director da Saúde Pública, Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917), mandou processá-lo por exercício ilegal da medicina e enviou uma circular às farmácias da capital, proibindo que aviassem as receitas do médico português. O não acatamento dessas deliberações levou o governo a determinar a sua expulsão do Brasil. Foi detido quando faltavam cinco dias para embarcar. O Supremo Tribunal anulou uma ordem de habeas-corpus concedida pelo juiz federal, por julgar incompetente a decisão daquele magistrado para julgar a inconstitucionalidade da lei de expulsão.
Uma comissão de portugueses e brasileiros, convictos da inocência de Urbino de Freitas no caso do envenenamento ocorrido no Porto, enviou uma petição ao Rei D. Carlos, pedindo a revisão do processo, que não foi deferido. Em 1913 Urbino de Freitas regressou a Portugal e até ao fim da sua vida alimentou uma batalha jurídica, procurando novos elementos de prova que o habilitassem a obter um despacho judicial favorável. Contou sempre com o apoio e a fé inquebrantável da sua inocência por parte da esposa, Maria da Dores Freitas. Morreu no dia 23 de Outubro de 1913.
O caso relatado originou ao livro O Caso Medico-Legal Urbino de Freitas , da autoria dos peritos forenses portuenses, que teve não só repercussão nacional mas também no exterior (foi editada uma versão francesa), alargando a visibilidade da toxicologia.

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