Numa madrugada de Agosto de 1961, a pacata localidade costeira de Capitola na Califórnia foi surpreendida por uma cena que parecia saída do livro «Os pássaros» de Daphne du Maurier, que vira a luz do prelo nove anos antes.
Centenas de aves marinhas invadiram o local e atacaram os habitantes num episódio bizarro que fascinou Alfred Hitchcock, veraneante frequente na vizinha Santa Cruz.
Hitchcock recolheu as notícias que fizeram as manchetes dos jornais locais numa proposta ao seu estúdio para um filme que apareceria nos cinemas dois anos depois. (Como nota de curiosidade, refere-se que está prevista para 3 de Julho de 2009 a estreia de um remake do filme).
Na altura, o nevoeiro cerrado que teria confundido os pássaros e os induzira a procurar as luzes da cidade foi a única explicação encontrada para o incidente, que não explicava o comportamento insano das pardelas negras, pássaros habitualmente pacíficos.
Uma explicação para o que de facto acontecera naquela manhã de 18 de Agosto de 1961 só foi possível em 1987 depois de detectives químicos (e biólogos) terem entrado em acção para descobrir o que causara a intoxicação de mais de uma centena de pessoas de Prince Edward Island no Canadá.
Esta era uma intoxicação alimentar pouco comum: aos sintomas iniciais somavam-se dores de cabeça incapacitantes a que se seguiu confusão, perda de memória, desorientação e, em casos extremos, tremores e coma.
Algumas das pessoas afetadas exibiam volatilidade emocional com manifestações de agressividade ou choro descontrolado. Três das vítimas faleceram e outras sofreram danos neurológicos irreversíveis.
Uma vez que a perda de memória era o traço comum a muitas vítimas, a condição foi designada intoxicação amnésica (amnesic shellfish poisoning, ASP).Epidemiologistas da Health Canada rapidamente identificaram o culpado macroscópico pela doença: mexilhões recolhidos de uma area específica da ilha nunca antes atingida por problemas análogos nem onde antes se detectaram florescências de algas.
Ensaios com ratos causaram a morte com sintomas neurotóxicos nunca antes vistos e muito diferentes dos encontrados com outras toxinas de origem marinha.
Tratava-se de algo completamente novo que desafiou os cientistas que não sabiam a que composto tóxico atribuir estes sintomas completamente novos.
O mistério começou a ser desvendado no dia 12 de Dezembro de 1987, quando uma equipe de biólogos marinhos e químicos foi reunida pelo Department of Fisheries and Oceans (DFO) do Canadá no laboratório em Halifax, Nova Scotia, do Conselho Nacional de Investigação Científica do Canadá.
O principal composto implicado na intoxicação do tipo amnésico (ASP), o ácido domóico (DA), foi encontrado após um estudo exaustivo em apenas 4 dias!
A tarefa desta equipe foi mais complicada que encontrar a proverbial agulha num palheiro e constitui uma verdadeira proeza química dada a enorme quantidade de compostos presente nos mexilhões e o fato de os investigadores não terem a mínima ideia de qual a estrutura do culpado pela intoxicação.
Esta epopéia química, contada em detalhe em vários artigos científicos, assentou no fracionamento de extratos dos mexilhões e seu teste em ratos até se encontrar o vilão.
O ácido domóico funciona como um cavalo de Tróia molecular.
Os neurônios confundem este aminoácido com o seu parente ácido glutâmico, ou antes, confundem as formas básicas de ambos.
O glutamato é um neurotransmissor excitatório que se pensa esteja envolvido em funções cognitivas como a aprendizagem e a memória.
As membranas dos neurónios e da glia possuem transportadores de glutamato que retiram rapidamente este aminoácido do espaço extracelular já que o seu excesso é altamente tóxico para os neurónios.
A acumulação de glutamato no espaço extracelular provoca a entrada de iões cálcio (Ca2+) nas células originando danos neuronais e eventualmente morte celular (apoptose)num processo conhecido por excitotoxicidade.
De facto, elevadas concentrações de glutamato funcionam como uma excitotoxina - excitam os neurônios até à morte num processo em cascata que estimula células vizinhas.
A estrutura mais rígida do DA faz com se ligue mais fortemente aos receptores de glutamato. Como resultado, o poder excitatório do domoato é entre 30 a 100 vezes maior que o do glutamato.
Alguns cientistas consideravam na altura que o ácido domóico, isolado em 1958 a partir de uma alga vermelha, doumoi ou hanayanagi, usada como tratamento tradicional para combater parasitas intestinais no Japão, não poderia ser o culpado pelo ASP já que não existiam na literatura nenhumas indicações de toxicidade da alga ou de extractos da alga.
Mas os extractos utilizados como remédios contêm no máximo 20 mg de ácido domóico enquanto algumas das vítimas do episódio de 1987 consumiram cerca de 290 mg de DA acumulado nos bivalves que se alimentaram de diatomáceas Pseudonitschia.
Desde 1987 que a análise de ácido domóico em marisco e peixe comerciais é um procedimento habitual e não há registos de mais intoxicações amnésicas.
Mas embora sem repercussões na saúde humana, os blooms regulares destas algas microscópicas que têm ocorrido nos últimos anos acarretam consequências trágicas na fauna marinha, nomeadamente da costa californiana, afectando leões marinhos, golfinhos, baleias e pelicanos, entre outros.
As dimensões que este problema começa a assumir e o fato de a bioacumulação de toxinas produzidas pelo fitoplâncton não se restringir ao ácido domóico, tornam premente que todos nos apercebamos quão vulneráveis estamos se não fizermos algo para salvar os nossos oceanos.
Ah! Dá licença seu Tuga! Tenha dó, vai!Foi viagem do grande Hitchcock, aliás, belo filme!!!
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